Glossrio de cor CECOR
23/10/2009
A independência da cor



Figura 1



Figura 2



Figura 3



Figura 4
Muitos fatos estão relacionados à autonomia da cor, assim como o surgimento da arte moderna abstrata. Mas é na Teoria das Cores de Goethe que encontramos as premissas marcantes sobre a cor e seu valor intrinsecamente independente. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) nasceu em Frankfurt, mas passa a maior parte de sua vida em Weimar (fig. 2), onde desenvolve sua obra cromatológica (fig. 1). Muitas outras foram às áreas de estudos e investigações de Goethe, mais conhecido como o grande poeta autor de “Fausto”.
Em Esboço de uma teoria das cores (Zur Farbenlehre - 1810), como Goethe a chama, estão os princípios de sua doutrina, em numerosos parágrafos numerados. Para ele era apenas um esboço, pois estava certo de que no futuro outros haveriam de ampliar e sedimentar seus estudos, embora uma base da teoria já existisse na obra de Leonardo da Vinci (1452-1519), segundo o artista plástico e pesquisador Israel Pedrosa de Da cor à cor inexistente. Este atribui a Leonardo a criação da base da Teoria da Cor, na qual muitos se basearam posteriormente.

Considerado um dos maiores gênios da história pela multiplicidade de talentos para as ciências e as artes, Leonardo incluíu a cor em seu "Tratado da pintura e da paisagem", cuja primeira edição foi publicada na França (em italiano), somente 132 anos após sua morte. Sua criatividade e engenhosidade ficam patentes em suas invenções e obras polêmicas. Ainda segundo Pedrosa, até mesmo a descoberta atribuída a Newton de que a luz branca é composta por cores teria sido feita por Leonardo.
 
Certamente foi Goethe quem mais fundo foi ao poço no desenvolvimento de uma teoria das cores. Mesmo depois da publicação da Farbenlehre, Goethe continuou sua investigação sobre as cores, que demandou por volta de quarenta anos de sua vida (fig 3). É uma obra extensa, com parágrafos numerados de 1 até 920, além da parte das “Cores Endópticas”, publicada em 1820, com 41 capítulos e a parte polêmica, onde Goethe faz a “Denúncia da Teoria de Newton”, também em parágrafos numerados de 1 até 680, conforme a versão espanhola de Esboço de uma teoria das cores, publicada na Argentina em 1945.
Para quem estiver interessado na Farbenlehre há também a versão italiana, onde figura apenas a Teoria das Cores, organizada por Renato Trocon, com introdução de Giulio Carlo Argan. Essa versão contém apenas os parágrafos de 1 até 920, mas traz na parte central uma série de desenhos modernos (fig. 4), relacionados às explicações de Goethe. Por fim, há também a publicação brasileira editada pela Nova Alexandria, com tradução parcial e comentários feitos por Marco Giannotti, denominada “Doutrina das Cores”. Não contém todos os parágrafos como as anteriores, mas é uma boa indicação para quem quer se iniciar nas teorias de Goethe. Vejamos então os principais aspectos sobre o Esboço de uma Teoria das Cores.

A crítica de Goethe a Newton
Uma parte interessante da Farbenlehre é a crítica feita aos postulados newtonianos da cor, nem sempre com muita razão. Ao comentar suas experiências, Goethe diz que Newton apenas se preocupou com a luz de uma estrela, o Sol, que era refratada em cores, isto é, em cor-luz, cuja reprodução pictórica os artistas fazem semelhança, com tintas.
Segundo Goethe, Newton descrevia apenas as direções dos raios de luz para explicar que as cores eram partes da luz branca. Já para Goethe o importante era perceber a totalidade do fenômeno, como o olho processava as imagens coloridas e como isso afetava os sentimentos dos homens como um todo. Goethe acreditava no poder das cores e buscou nelas os fenômenos sensíveis e psicológicos, tentando desvendar sua natureza misteriosa, diferentemente do cientificismo matemático de Newton.

O conceito de visão
Hoje sabemos que o olho é apenas um órgão que detecta diferentes comprimentos de ondas da luz transmitidos ao cérebro, criando em nossa mente a sensação colorida, como se a cor existisse concretamente. Infelizmente, nem Newton nem Goethe (e nem mesmo Chevreul) tiveram a sorte de perceberem claramente as diferenças entre cor-luz e cor-pigmento, fontes de muitas confusões nos estudos de ambos em suas respectivas épocas. Entretanto, Goethe descobriu, de certo modo, as cores da síntese subtrativa com suas experiências prismáticas, que são a base de organização do seu círculo de cores.

O fenômeno das franjas coloridas
Essa descoberta deveu-se ao experimento errôneo que Goethe fez, procurando ver o espectro descrito por Newton. Entretanto, sua descoberta foi surpreendente e tem a ver com os limites existentes entre dois valores: o claro e escuro. Goethe, ao dirigir seu olhar diretamente por um prisma (como alguém que olha pelo lado contrário de uma luneta), não vê as cores como descritas por Newton: ele observa o fenômeno das franjas coloridas nas bordas de objetos, parte branca, parte preta, produzidas no limites dessas áreas, como que originárias da luz e da escuridão. Os desenhos explicativos desses fenômenos podem ser tomados como os primeiros quadros de arte geométrica-abstrata.
De certo modo, isso tem muito a ver com os conceitos do chiaro-oscuro postulado por Leonardo. Ou seja, o conceito dos contrastes, muito usado pelos mestres da Bauhaus nas suas lições sobre as propriedades psicodinâmicas das cores.

A questão das sombras coloridas
Goethe estudou o fenômeno das sombras coloridas entre os parágrafos 62 e 80 da Farbenlehre, um fenômeno que mostra a complementaridade das cores. Por exemplo: ao projetarmos uma luz vermelha sobre um objeto, sua sombra se mostrará escura, como qualquer sombra. Mas se uma segunda fonte de luz (no caso, luz branca) também iluminar o objeto de uma outra posição, aparecerão duas sombras, uma vermelha (da luz branca) e outra azul-ciano (da luz vermelha).
As sombras provocadas pela luz do sol, dependendo do horário e da tonalidade geral do céu, também tomam a cor complementar dos locais onde são projetadas. Esse é um dos primeiros fenômenos percebidos pelos artistas que criaram o impressionismo quando pintavam paisagens no campo, como se pode observar em alguns quadros de Monet e outros artistas daquela época. Mas, é ainda Leonardo quem faz uma das primeiras referências às sombras coloridas, segundo Pedrosa:
“(...) Chama-se sombra colorida a sombra de coloração complementar à cor do fundo onde ela surge. Percebendo que nem sempre a cor da sombra corresponde à do corpo onde ela aparece, Da Vinci deu o primeiro passo para a explicação do fenômeno das sombras coloridas ao demonstrar que as sombras cuja cor não corresponda ao escurecimento do corpo opaco onde surja são sombras produzidas pela conjugação de luzes de colorações diferentes” (p. 47).
Foi estudando esse fenômeno descrito por Goethe que o físico norte-americano Edwin H. Land encontrou a solução para suas pesquisas que resultaram na invenção do filtro polarizador de luz, de largo emprego em laboratórios de física. Depois inventou a câmera fotográfica Polaroid, de revelação instantânea, hoje substituída pelas câmeras digitais.

A complementaridade das cores e a formação do círculo cromático
A obra de Goethe constituiu a base da arte e ciência da cor no seu aspecto mais amplo, tratada por ele como um fenômeno sensível muito além da física newtoniana. Historicamente, Goethe mudou a lógica do círculo de cores de Newton. Enquanto este seguiu o caminho da análise intrínseca da luz, Goethe, mais de um século depois, seguiu a lógica do poeta e pensador, sensível aos fenômenos desta sobre a psique dos indivíduos.
Goethe sabia que as misturas dos extremos coloridos dos espectros (vermelho e azul) produziam o púrpura. Assim, elege corretamente esta cor como o vértice do seu triângulo primordial de cores primárias; da mistura entre elas surgem as cores secundárias verde, vermelha e anil. Desse modo, desenvolve seu círculo numa estrutura perfeita, como as cores primárias e secundárias na mesma sequência harmônica das cores do arco-íris, onde apenas o púrpura (hoje magenta) não aparece. Trata também da persistência da imagem na retina (pós-imagem) e a questão dos efeitos de cores simultâneas, alicerce do trabalho de Chevreul anos depois. Criou ainda o conceito de polaridade, base estética do seu círculo de cores, que define também propriedades psicodinâmicas às cores: quente/frio, perto/longe, grande/pequeno etc.
Vale lembrar que a sequência das cores do arco-íris - ou do espectro - contém um estado de equilíbrio, base da estética harmônica das cores. Entretanto, muitos círculos são feitos ainda com vermelho no lugar do púrpura. Provavelmente foram adaptados às cores das tintas usadas na pintura, mais relacionados ao sentido simbólico e significativo, assunto que poderemos abordar num outro artigo.
O valor da cor como elemento de expressão desvinculada do desenho clássico começa no início do século passado com a arte moderna, onde a cor em si mesma é o elemento pictórico, como em Kandinsky, Mondrian e tantos outros. A Doutrina de Goethe também deu respaldo às primeiras manifestações de independência da cor surgida com o impressionismo, onde o arranjo das cores criava a ilusão de atmosfera, de espaço. Depois veio o pós-impressionismo, que indiretamente tem a ver com a retícula das artes gráficas e a pixelização digital da imagem nos meios de comunicação eletrônicos.

Nelson Bavaresco - designer gráfico e pesquisador. Ministra treinamentos sobre Teoria e História das Cores – Linguagem e Significado da Cores - Harmonia e Mistura de Cores. É autor do Sistema de Cores Cecor.
Texto publicado originalmente em:
http://www.mundocor.com.br/cores/independencia_cor.asp


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